Luta de classes
(Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em
13/01/2014)
Desde que a presidenta Dilma Rousseff denunciou a
“guerra psicológica” que estaria sendo travada contra os esforços de seu
governo para acelerar o crescimento da economia brasileira, os adversários
acirraram suas críticas à política econômica vigente, tornando o debate sobre
essas questões um dos mais importantes pomos de discórdia que animam os embates
entre os candidatos à Presidência nas próximas eleições.
É interessante observar como esses debates
–travados num país como o nosso, em pleno emprego há cinco anos– não se
distinguem na essência dos debates travados na maioria dos países capitalistas
que são democráticos. Nestes países, quase sempre o desemprego é o mais
importante problema social, causa de profundo sofrimento dos que se sustentam
mediante trabalho assalariado, tanto dos que têm emprego e temem perdê-lo como
dos que foram demitidos e enfrentam grandes dificuldades em conseguir outro.
Isso se aplica tanto a países tidos como “falidos”,
como a Grécia e outros da periferia sul da Europa, como aos Estados Unidos e
outros que hospedam poderosas multinacionais financeiras e utilizam seu poderio
político-econômico para impor a países esmagados por portentosas dívidas
públicas ruinosas políticas de “austeridade”, cujo efeito é produzir recessões
sucessivas, que ampliam o desemprego e a desgraça dos que não são donos de
empresas nem sequer de instrumentos de trabalho que lhes permitiriam ganhar a
vida por conta própria.
A maior parte das divergências que atualmente
alimentam as controvérsias giram ao redor da questão do emprego e do tamanho e
destino do gasto público e de como o ônus dele decorrente é repartido entre as
classes sociais que compõem o universo dos contribuintes.
Ao lado desses dois temas, aparecem assuntos
correlatos: como os ganhos de produtividade do trabalho são repartidos entre
lucros e salários, como a inflação responde ou não aos aumentos de salários e
como a valorização cambial da moeda nacional afeta as exportações e as
importações.
A base da maioria dessas controvérsias está no
tamanho do poder do Estado em controlar e conduzir a economia nacional, tendo
por objetivo atender mais ou menos as reivindicações da maioria pobre da
população, que constitui também a maioria do eleitorado.
A classe dominante é formada pelos capitalistas que têm por objetivo a sua
“liberdade” de fazer o que quiserem com o câmbio, com a localização geográfica
de seus investimentos, com os preços e juros que eles cobram dos clientes. Para
tanto, eles reivindicam a exclusão do Estado da arena econômica.
A esse respeito, os interesses dos capitalistas e
das classes trabalhadores não podem deixar de se contrapor. O povo trabalhador
depende das políticas ditas “sociais” que tomam a forma de serviços públicos
essenciais: saúde, segurança, transporte, energia, telecomunicações, educação
de crianças, jovens, adultos e idosos, habitação social, previdência, cultura
etc.
Embora os serviços públicos estejam à disposição de
toda a população, somente os pobres dependem deles. As classes abastadas não os
usam, porque quase todos eles têm como contraparte serviços análogos prestados
por empresas capitalistas privadas.O entrechoque de interesses fica flagrante no caso
do transporte urbano: o espaço de circulação é disputado por automóveis de
passageiros e ônibus e outras modalidades de transporte público.
A mesma disputa fica tristemente óbvia quando os
porta-vozes da classe capitalista encenam campanhas contra o tamanho dos
impostos, quando todos sabem que o SUS, o Sistema Único de Saúde do qual
dependem os trabalhadores, carece de meios para curar e salvar vidas porque o
Orçamento do governo federal não dispõe de recursos para tanto.
A luta de classes até o fim do século passado se
travava entre liberais extremados, conhecidos como neoliberais, e partidários
de diferentes socialismos então sendo praticados em diversos países.
Atualmente, a maioria desses socialismos “realmente existentes” não existe
mais. A plataforma dos críticos e adversários do capitalismo hoje é inspirada
tanto no marxismo como em autores profundamente comprometidos com a democracia
como Keynes, Gramsci, Karl Polanyi, Rosa Luxemburgo e Baruch Spinoza.
O que atualmente surge como alternativa mais
significativa ao capitalismo é a economia solidária, praticada por setores
organizados em movimentos sociais em todos os continentes, geralmente sob a
forma do cooperativismo. A economia solidária é um modo de produção que
surgiu nos alvores da primeira revolução industrial, no início do século 19, na
Grã-Bretanha e na França, como reação aos salários miseráveis pagos então aos
operários, operárias e crianças nas fábricas por jornadas extenuantes de 15 ou
mais horas.Ocorrendo conflitos com os patrões, os grevistas
eram despedidos e, em reação, formavam suas próprias oficinas, uma vez tendo
aprendido os segredos do ofício.
Desse modo surgiram as primeiras cooperativas de
trabalho, empresas pertencentes aos trabalhadores, que as administravam
coletivamente, cada sócio tendo um voto nas assembleias em que as decisões eram
adotadas. Os ganhos resultantes do trabalho comum eram repartidos por critérios
de justiça distributiva entre os sócios, adotados por maioria ou unanimidade
nas assembleias.
Esse modelo aperfeiçoado pelos Pioneiros de
Rochdale, em 1844, continua sendo praticado, com aprimoramentos de todas as
filiadas à Aliança Internacional de Cooperativas, inclusive as agrárias, de
consumo, de crédito, de moradia e de diversas outras modalidades.
Hoje, 170 anos depois, o cooperativismo surge como
um modo de organizar atividades de produção, comércio justo, poupança e
crédito, consumo consciente e responsável e sob a forma de movimento social
dedicado à luta contra a miséria e naturalmente como alternativa ao modo de
produção dominante – o capitalismo. Com a difusão da democracia como modelo de
normalidade política, a economia solidária torna-se cada vez mais atraente para
os que almejam igualdade e justiça para suas comunidades.
Os seus partidários defendem em geral políticas
econômicas inspiradas pelo keynesianismo, cujo objetivo maior é o pleno emprego
e a eutanásia do rentista, o que significa o fim da hegemonia global do capital
financeiro, que é o maior responsável pelas frequentes crises internacionais,
das quais os trabalhadores são as principais vítimas. O trágico fiasco que precipitou o fim pacífico da
maioria dos regimes ditos comunistas abriu um imenso vazio ideológico, político
e, por que não, ético que o novo papa Francisco começa a preencher em nome da
Igreja Católica.
Por tudo isso, reconhecer a pancadaria ao redor de
nossa política econômica como luta de classes é necessário para que o público
que vai decidir essa parada nas urnas não seja levado a pensar que se trata de
uma contenda entre peritos (experts em inglês) e jovens ingênuos que pouco
entendem do que está em jogo. Os que reagimos aos excessos do neoliberalismo
temos em vista, acima de tudo, preservar e enriquecer a democracia em nosso
país, como garantia de que a luta por uma sociedade mais justa poderá
prosseguir até que seus frutos possam ser usufruídos por todos.
PAUL SINGER, 81, é
Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.